Muitos professores, em diferentes tempos e espaços já foram interpelados por seus alunos com a seguinte questão:

Mas afinal, por que eu tenho que aprender isso?

 
As respostas, que em geral se apóiam na preparação para as etapas subseqüentes do currículo não costumam satisfazer os alunos, os quais acabam sucumbindo ao ensino escolar, ainda que não vejam sentido naquilo que lhes é ensinado.

 
Poderíamos justificar o ensino dos conteúdos escolares pelo amanhã, ou seja, pela preparação para a vida em sociedade e enfrentamento dos problemas dela decorrentes. Esse último argumento parece legitimar-se por atribuir um sentido à educação escolar, por considerá-la numa perspectiva que vai além dela mesma. Entretanto, o que sabemos a respeito do futuro?

 
Na dinâmica do mundo atual, marcada pela evolução tecnológica e cujas transformações redesenham continuamente as relações pessoais, profissionais e sociais, preparar um aluno para o amanhã é prepará-lo para o desconhecido.

Como podemos prever exatamente o desenho da nossa sociedade no futuro?

Como saber se os conhecimentos trabalhados hoje, na escola, servirão como ferramentas de inserção e de ação nessa sociedade que está por vir?

Na busca de respostas a essas questões e tentando superar a crescente compartimentalização disciplinar, discute-se hoje um novo modelo de educação pautado no desenvolvimento de competências. No dicionário competência é definida como a soma de conhecimentos ou de habilidades. No contexto educacional, entretanto, tal definição deve ser ampliada, abordando o aspecto essencial da mobilização dos conhecimentos e habilidades, ou seja, a idéia de competência está mais ligada ao que o indivíduo é capaz de fazer a partir do que possui. Mais especificamente, e conforme apontado por Lino de Macedo no livro “Ensaios Pedagógicos”, competência implica, então, fazer escolhas, decidir, mobilizar recursos e agir.

Essa idéia não se opõe ao conhecimento disciplinar, mas considera que um programa organizado em torno dos conteúdos coloca como fim aquilo que na realidade deveria ser da ordem dos meios. Conteúdo é meio. Meio para formação pessoal, para o desenvolvimento de competências, tanto aquelas ligadas a contextos mais específicos como, por exemplo, a realização de cálculos ou aplicação correta de determinadas regras gramaticais – e, por isso, mais exploradas no interior de determinadas disciplinas, como aquelas mais amplas e que não estão ligadas a uma disciplina em particular, como a capacidade de expressão ou de argumentação, por exemplo.

 
Vemos então que certas competências não se limitam ao âmbito de uma única disciplina, transpondo assim suas fronteiras e, nesse sentido, podem ser consideradas transversais, ainda que sua utilização possa ser estruturada pelos objetos sobre os quais se aplicam. Convém ressaltar, contudo, que mesmo sendo transversal, uma competência não pode ser considerada de forma totalmente independente do conteúdo em questão.

Colocar as competências como um organizador do ensino significa dar um novo sentido às disciplinas escolares ou uma nova intencionalidade. As disciplinas devem desenvolver, nos alunos, a intenção de compreender o mundo através das ferramentas por elas oferecidas.

Nesse sentido, considerar o raciocínio lógico como uma competência transversal a ser desenvolvida na escola, implica construir uma nova relação didática em sala de aula, pautada no desenvolvimento do pensar e na compreensão por parte dos alunos acerca do seu processo de conhecer. Exige, ainda, colocar a racionalidade como uma intenção, conforme sugerido por Bernard Rey no livro intitulado “As competências transversais em questão”.

 
A intenção racional pode se manifestar na forma como ensinamos os conteúdos disciplinares aos nossos alunos:

Esperamos uma aceitação passiva ou promovemos a construção do conhecimento, incentivando-os a confrontar idéias?

Os tratamos como se nada soubessem sobre os objetos de conhecimento ou os desafiamos a colocar o novo em relação com aquilo que já conhecem?

Valemo-nos de nosso status, de nossa autoridade docente para que os alunos aceitem tais conhecimentos como verdades inquestionáveis ou incentivamos a investigação, a troca de idéias?

Estruturamos nossas aulas segundo o esquema de apresentação de conceitos, seguidos de exemplificações e exercícios de fixação ou em torno da resolução de problemas?

O raciocínio lógico não se desenvolve num modelo de ensino explicativo, mas num ambiente de investigação, de formulação de perguntas de levantamento de hipóteses e de coordenação de diferentes pontos de vista. É preciso levar em conta que todo conhecimento científico nasceu como resposta a uma pergunta ou a uma necessidade.

Será que nossas aulas constituem um espaço no qual os alunos aprendem a fazer perguntas e buscar respostas?

Permita-me ilustrar essa questão com um pequeno relato de uma experiência vivida há alguns anos com meus alunos de uma turma do 5° ano. Para que as crianças pudessem observar alguns aspectos relativos ao funcionamento da natureza, construímos um terrário (isso foi feito antes de qualquer aula teórica sobre o assunto).

Ao perceberem as gotículas de água, que se formavam no vidro e sob o plástico que o cobria, as crianças começaram a levantar hipótese sobre sua origem, construindo um modelo explicativo preliminar para o ciclo da água. Aprofundando o estudo sobre esse tema, um de meus alunos levantou uma questão que gerou uma grande polêmica em sala: se a água que cai do céu é aquela que evapora da terra, então na praia chove salgado?

 
A pergunta dividiu a turma, pois alguns afirmavam que deveria ser salgada, enquanto outros, com base numa verificação empírica anterior, contestavam essa idéia. A resposta, segundo eles, poderia ser encontrada numa excursão ao litoral, mas após fazerem um levantamento de custos concluíram que esta deveria necessariamente acontecer num dia de chuva e, mesmo assim, iriam apenas constatar se a água da chuva era salgada ou não. Caso não fosse, não encontrariam ali a explicação para tal fenômeno.

Na busca dessa explicação, reproduzimos a situação em ambiente de laboratório: fervendo água misturada com sal, as crianças perceberam que ela evaporava, deixando o sal no fundo da panela. Aventaram então sobre a possibilidade de haver uma diferença na temperatura de evaporação do sal e da água…
A intenção racional deve ser desenvolvida na escola como uma ferramenta da qual o sujeito dispõe para se relacionar com o novo e que lhe possibilita a construção da autonomia intelectual.

É necessário que nossos alunos tenham a intenção e o desejo de compreender o mundo que o cerca, pois sem isso, não podemos falar em educação no sentido pleno da palavra, apenas em doutrinação ou adestramento.

Texto originalmente publicado na Revista Aprendizagem. Ano 3 n° 12/2011. Editora Melo. Edição maio/junho – 2009. 

Ana Ruth Starepravo

Ana Ruth Starepravo

Doutora em Educação pela USP, Pedagoga e Mestre em Educação pela UFPR. Mulher, mãe, professora, escritora, pesquisadora e apaixonada por educação, especialmente pelo ensino e aprendizagem de matemática.

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